Na Estante - "Elogio do Passeio Público", Filipa Martins


“E os dedos dançam na ponta da página…”

Inteligência é talvez a palavra que melhor define Elogio do Passeio Público. É de uma maneira criativa e extremamente inteligente que a autora, Filipa Martins, retrata as limitações do ser humano.
A obra contém uma receita que prende a atenção do leitor do inicio ao fim: uma dose de bom humor, uma pitada de exagero e q.b. de dificuldade.
Em Elogio do Passeio Público, com uma acção decorrida em “passeios e ruas olisiponenses, onde as senhoras virtuosas passeiam as cadelas e o resto passeia a fome” - (p.17), é-nos mostrado que «a vida é uma história com muitos alçapões» - (p.133), retratando-se a condição humana e a maneira como as pessoas, ao saírem de suas casas, pretendem que os outros olhem para elas da melhor maneira criando, por vezes, personagens aos olhos dos outros, uma espécie de vida dupla. Assistimos, assim, à criação de um “nosso homem”, que querendo ser bom em alguma coisa, criava uma fachada para a sua preguiça. Encontramos uma Aurora que é Consuelo, uma mulher da moda, de virtudes aparentes durante o dia, mas que durante a noite se transforma num mero objecto para satisfazer os desejos carnais de “generais e tenentes” e de outros “nosso homem”, talvez devido ao que o narrador chama de “inaceitabilidade do seu EU”.
A utilização de “personagens-tipo” confere à obra um carácter social, em que cada uma representa uma classe de uma época particular - o Estado Novo. Um general cujas capacidades eram maiores que as do país, cujas ideias e visões estavam mais à frente da altura; um “pai do nosso homem” que criticava a ditadura mas vivia às custas deste regime e que acreditava que nesta vida “nada se faz com se faz favores”; a peixeira, a Velha Castiça e tantos outros…
Não se espante, caro leitor, com a denominação das personagens. Pergunta-me pelos seus nomes? Pois nem eu o sei! E este é um dos pontos mais curiosos do livro: a inominação das personagens, que nos remete, de certa forma, para o panorama social da altura em que as pessoas viam o seu estatuto de “ser humano” reduzido.
Outros dos aspectos que, na obra, despertam o interesse do leitor é o facto de o narrador nunca terminar um episódio, deixando-o em suspense e retomando-o mais à frente, revelando o seu contexto. Isto faz com que o leitor só no fim, reconstruindo toda a história, se aperceba dos factos e das ligações existentes.
Elogio do Passeio Público é, sem dúvida, uma excelente representação (um tanto ou quanto disfarçada) da postura ditatorial existente e da vida no Estado Novo. Através das personagens, o narrador (cuja presença vai sendo mais demarcada e mais notória ao longo do livro) estabelece uma relação entre os comportamentos e as vivências neste regime repressivo. Apercebemo-nos da tristeza e desespero que o país atravessava – «uma camada feita de pequenez do pensar e de tristeza farta, que quase chega a ter em si uma beleza própria daqueles que aceitam um certo grau de desespero. A beleza dos tristes.», P.27-; uma sensação de inconformismo face à situação vivida e de admiração por quem tinha estado “lá fora”; a Puritanidade (quase que ridícula) que transformava Portugal num país de virtudes aparentes, de prazeres e desejos escondidos - «Dentro do hábito, deliciava-se com as partes proibidas de livros (…) com textos inapropriados à sua condição religiosa.» - P.41; e ainda um patriotismo exacerbado e a necessidade de uma constante exaltação do nacionalismo: o lema dos “soldados” era «nós amamos a nossa pátria», a “Portuguesa” estava sempre a passar na rádio “desde que o sol se põe, até que o galo canta”…
Também a Censura e o Controle exercidos têm um papel relevante no desenrolar da obra – encontramos o exemplo da lista de livros proibidos e a cómica e bem-humorada descrição das “substituições arcaicas e automáticas” que provocavam grandes gargalhadas nas tabernas «Em Lisboa só se publicavam cantos gregorianos e histórias de fazer oó (…) e romances de cordel com emendas, onde as “relações sexuais” dão lugar ao “coito”…» - P.25; e ainda o exemplo do controle da PIDE (apelidada de “as toupeiras”) em relação aos isqueiros.
Outro dos assuntos bastante interessantes é o valor, representação e papel da mulher na sociedade. Vemos que as mulheres eram, um tanto ou quanto, reduzidas na sua condição humana em que «a aparência é importante. (…) os homens não gostam do lado de galinácea das mulheres (…) Acene muito (…) junte um pouco mais os braços para realçar o decote.» -P.66. Vemos as mulheres como que transformadas em objectos perante os homens (e lembremo-nos que nesta altura existia o conceito de que o chefe de família era o Homem) que serviam para concordar com eles e lhes dar prazer. Temos a personagem da Consuelo ( que é Aurora) como exemplo desta situação.
O religiosismo é também frequentemente satirizado descrevendo-se as crentes como «envoltas em xailes negros e de catecismo e terço na mão» - P.18. Outra descrição extremamente bem conseguida, é o caso das viúvas, caracterizadas como “uma comunidade de formigas em carreiros”, sempre vestidas de preto com os seus rituais e comportamentos tão próprios.
Nesta obra as vidas são como que expostas no “passeio público”, revelando os defeitos e qualidades dos “seres humanos”, levando-nos, inevitavelmente, a rever-nos em algumas destas personagens. A complexidade da escrita (marcadamente e inesperadamente masculina) leva-nos muitas vezes a ter vontade de fechar o livro, parar para respirar e assimilar tudo o que já foi lido, mas a perspicácia da descrição e da apresentação da história leva-nos, também, de imediato a retomar a leitura e, como que a devorar a obra, querer chegar ao fim para completar a trama e terminar o puzzle. Mas, caro leitor, no fim fica uma certeza: definitivamente, “os dedos dançam na ponta da página”.

Mais informação:
Autor(a): Filipa Martins
Título: Elogio do Passeio Público
Editora: Guimarães
Ano de Edição: 2008
Páginas: 149
Preço: 15€
Classificação: 4/5
Texto de: Ana Raquel Justino Cabaço

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